Em meio à rotina das cidades amazônicas, entre o concreto e o verde, há espaços como os quintais produtivos amazônicos, áreas cultivadas em torno das casas que reúnem árvores frutíferas, hortas, plantas medicinais e até criação de pequenos animais. Mais do que locais de produção, eles são territórios de resistência, saberes e protagonismo feminino.
“Os quintais produtivos são sistemas sustentáveis e acessíveis, típicos da Amazônia. Eles unem o rural e o urbano, garantindo alimentos, renda e preservando a biodiversidade”, explica Josiane Santos da Silva, engenheira agrônoma e doutora em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (Naea/UFPA). Para ela, esses espaços são verdadeiros laboratórios vivos, onde se combinam plantas alimentícias, medicinais e ornamentais, e onde o conhecimento ancestral das mulheres segue germinando geração após geração.
Raízes e resistência feminina
Historicamente conduzidos por mulheres, os quintais produtivos têm se mostrado espaços de autonomia e inovação. É o que confirma a engenheira agrônoma Antonia Aleixo, coordenadora do projeto Quintais Produtivos Amazônicos, criado em 2017 em Marituba (PA). A iniciativa começou com 50 famílias e chegou a envolver 200 quintais, ganhando prêmios do Sebrae e reconhecimento em políticas públicas federais.

“Hoje são 50 mulheres ativas, com apenas dois homens. Trabalhamos segurança alimentar, aproveitamento integral dos alimentos, compostagem e até biodigestores para geração de gás e aproveitamento do lixo orgânico. Temos também abelhas nativas, que se tornaram uma fonte de renda para as famílias”, relata Antonia.
Segundo ela, o projeto transformou o olhar das mulheres sobre o território e sobre si mesmas. “Elas passaram a se ver como produtoras, empreendedoras e guardiãs do meio ambiente”.
Essa transformação ecoa também na trajetória de Martônia Caetano, moradora de Santa Bárbara (PA) e participante do projeto desde 2017. Seu “Quintal Estação Verde” é exemplo de como o aprendizado coletivo pode florescer em autonomia.
“Eu não sabia nada sobre plantar ou compostagem. Aprendi tudo nas oficinas e hoje tenho um quintal sustentável, com abelhas nativas, frutíferas e plantas medicinais. O que produzo aqui me alimenta, gera renda e ainda ensino outras pessoas sobre educação ambiental”, conta.
Martônia cultiva acerola, graviola, banana e até flores comestíveis. Faz compostagem com o lixo da cozinha, recicla embalagens para artesanato e ensina crianças da escola e da igreja sobre o ciclo natural de reaproveitamento. “Tudo o que planto retorna em forma de vida”, diz, com orgulho.
Desafios e caminhos para florescer
Apesar dos resultados positivos, as pesquisadoras alertam para os desafios que ainda limitam o fortalecimento dos quintais produtivos no Brasil. A ausência de políticas públicas específicas, o sub-reconhecimento do trabalho feminino e a urbanização acelerada ameaçam a continuidade dessas práticas.
“O protagonismo das mulheres nos quintais ainda é invisibilizado. São elas que garantem a diversidade alimentar e mantêm os saberes tradicionais, mas raramente aparecem nas estatísticas oficiais”, destaca Josiane Santos. Ela defende uma integração maior entre as áreas de meio ambiente, agricultura e segurança alimentar, para que os quintais sejam reconhecidos como parte essencial da economia e da adaptação climática.
Segundo a pesquisadora, durante a COP 30, que acontece em Belém, os quintais produtivos prometem ocupar lugar de destaque nas discussões sobre agroecologia, sociobiodiversidade e transformação dos sistemas alimentares. Iniciativas como o Plano de Transição Agroecológica (PAS TERRA) e o Programa Nacional de Florestas Produtivas dialogam diretamente com essa prática, valorizando o conhecimento tradicional como estratégia de mitigação climática.
Embora nem sempre citados nominalmente, os quintais estarão presentes nas pautas de agricultura familiar e bioeconomia, temas centrais da conferência. “Esses espaços são exemplos concretos de como é possível viver com o meio ambiente, e não contra ele”, afirma Josiane.
“Eles mostram que as soluções climáticas podem nascer dentro de casa, nas mãos das mulheres amazônicas que plantam futuro todos os dias”.
Um futuro que começa no quintal
Na Amazônia, cada muda plantada é um gesto de resistência e esperança. Nos quintais de Marituba, Santa Bárbara e tantas outras comunidades, mulheres como Martônia e Antonia demonstram que o enfrentamento à crise climática pode começar no chão de casa,com sabedoria, cuidado e coletividade.
“Quando a gente planta e cuida, a natureza devolve”, diz Martônia, sorrindo entre suas flores e abelhas. “É assim que a vida continua,e é assim que a Amazônia vai continuar viva também”.


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