Esses dias, achei um HD antigo — tão antigo, que tive que fazer uma gambiarra para encaixar os conectores e agora sei a diferença entre ATA e SATA. Dentro, pastas com backups de uma vida cronicamente online e um tesouro escondido. Playlists que eu tinha feito há quase vinte anos. Primeiro para tocar nos MP3 players velhos de guerra, depois para o celular, que ainda não era smart, mas já fazia bastante coisa.
Dei play, meio por curiosidade, meio por saudade. E nisso percebi que muito do que eu ouço hoje já estava ali, nas faixas que eu escolhi quando era adolescente. Era como se aquelas músicas tivessem me ensinado o que eu gostaria. Claro que muita coisa aconteceu de lá para cá, já tive várias versões de mim mesma, mas aquele primeiro disco do NX Zero ainda reverbera diferente aqui.
Então fiz o que qualquer pessoa desocupada curiosa faria: joguei no Google Acadêmico. Para a surpresa de ninguém, esse sentimento não é só nostalgia. A ciência confirma que a música tem esse poder de moldar a memória e a identidade. Ela vira uma espécie de âncora emocional, que conecta o presente a versões antigas de nós mesmos.
O auge
Entre todas as fases da vida, a adolescência é o ponto mais intenso dessa ligação entre música e memória. Entre os 13 e os 27 anos (alguns especialistas falam em 15 a 25), a gente vive o chamado pico de reminiscência. Nesse período as músicas se imprimem na memória com uma força que quase nenhuma outra experiência iguala.
Talvez seja porque a adolescência é um tempo de descobertas, instabilidade e construção. Tudo parece urgente, e a música é quase como um abraço, ou aquilo que te faz pertencente a algum lugar.
Picos, ecos e renascimentos
A memória musical não segue uma linha reta. Ela se organiza em camadas, como ondas que voltam com o tempo. Como dizia o 10º Doutor, é “um barato muito doido de espaço-tempo coisado”.
Há o pico da adolescência, com aquele som que molda quem somos. Mas também o efeito de recência, quando músicas mais novas ganham importância. Isso sugere que a capacidade da música de adquirir significado pessoal segue também na vida adulta. Por fim, existe o pico em cascata, um tipo de herança sonora. São as músicas de antes da gente nascer, que chegam até nós pelos pais, avós e familiares. Ou por algoritmos do streaming.
As pesquisas mostram também que homens e mulheres vivem a música de modos diferentes. Os homens costumam consolidar seus gostos mais cedo, por volta dos 16 anos, e carregam essas referências quase intactas pela vida. As mulheres, por outro lado, costumam ter um pico mais tardio e uma relação mais dinâmica com a música, incorporando novas faixas significativas ao longo dos anos.
Quando a música ensina o que sentimos
Na juventude, a música é quase uma ferramenta. Serve para se acalmar, ganhar energia, entender o que se sente. Para criar identidade e autoconsciência, mesmo.
A música começa a agir como o que os pesquisadores chamam de tecnologia do eu. É um meio de ensaiar emoções, testar limites e criar um espelho onde a gente se reconhece. Um jeito de aprender a ser, aos poucos, sem precisar dizer tudo em voz alta.
Ouvir aquelas playlists antigas só me fez confirmar que a música não é só trilha sonora da vida, ela é parte dela. Cada faixa guarda uma versão nossa. E toda vez que uma melodia familiar toca, é como se abríssemos um portal para o que fomos. Como se, por um instante, nos lembrássemos de tudo o que ainda somos.
Os artigos que citei nesta coluna foram:
- “Memory bumps across the lifespan in personally meaningful music”. Estudo sobre os picos de lembrança e o papel da música na memória autobiográfica.
- “Why I listen to music: Emotion regulation and identity construction through music” Pesquisa que explora como adolescentes usam a música para lidar com emoções e formar identidade.
Veja a publicação anterior da coluna:


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