Por quase uma década, Melissandra vem escrevendo sua história à margem. Aos 27 anos, essa “multiartivista” paraense, como ela própria se define, nasceu em Marabá e hoje reside em Belém. Ela é cantora, compositora, poeta, produtora cultural e, sobretudo, uma presença de resistência em uma sociedade que insiste em excluir corpos como o seu.
“Pra sobreviver sendo uma travesti na Amazônia paraense, eu tive que aprender a fazer de tudo”, ela conta. E não é exagero. Ela foi vendedora ambulante, CLT, prostituta, artista de rua, tudo isso enquanto construía uma trajetória artística marcada pela resistência. “Não sou multiartivista por vaidade. É porque, diante da escassez de oportunidades, precisei me reinventar para existir”.
A música é sua principal linguagem. Em 2025, lançou o álbum Mapará, pela Guamaense Produções. Mas a própria artista diz que a obra é mais do que um disco. “Mapará é um projeto-manifesto”, define. “É uma denúncia, mas também um convite. Um convite ao encantamento com a potência das nossas produções travestis amazônicas”.
Produzido majoritariamente por pessoas trans da região, o disco se ergue sem patrocínios oficiais, financiado por redes de afeto e coletividade. “Tivemos apoio de pessoas trans, de organizações lideradas por pessoas trans. Gente que todos os dias resiste ao sucateamento das políticas públicas e à falta de financiamento real”.
Mapará fala de território, ancestralidade, exclusão, mas também de esperança. Melissandra explica que o nome do disco faz alusão a um peixe amazônico, mas também a uma metáfora de divisão e pertencimento. “Mapará é dividido em dois lados. Ele carrega esse movimento contra-binário, essa reflexão de que mesmo fragmentadas, todas nós fazemos parte de um mesmo coletivo”.
A artista fala de sua música como quem descreve um espelho de muitas faces. “Cada faixa tem um pedaço da minha vivência. Da minha performance como travesti amazônica, das dores, das raivas, mas também da beleza de estar viva”.
E estar viva, no caso de Melissandra, é ato de resistência diário. Expulsa de casa, rejeitada por parte da família, vítima do preconceito no mercado de trabalho, inclusive quando tentava se manter na universidade, ela precisou deixar Marabá durante a pandemia e recomeçar a vida em Belém. Foi aprovada no curso de Ciências Sociais da UFPA, onde segue estudando hoje.

“Sou filha de uma professora e mãe de duas crianças. Vivi muitas vidas em uma só. Já estive nos becos, nas salas de aula, nos palcos. Hoje me vejo como uma construção em movimento, o tempo todo me desfazendo e me refazendo”.
Espiritualidade
Essa reconstrução passa também pela espiritualidade. Melissandra é filha de santo em um terreiro de umbanda e mina liderado por uma sacerdotisa travesti, o Templo de Rainha Bárbara Soeiro e Toyas Acabo. “É uma casa ancestral regida por uma força que mudou a minha vida. Foi ali que eu reencontrei uma noção de família, de pertencimento”.
Contra o apagamento, Melissandra oferece presença. Contra a exclusão, ela canta, escreve, grita. E oferece, em cada gesto artístico, uma lembrança viva de quem veio antes. “Cada travesti viva hoje no Brasil carrega o sangue das milhares que tombaram antes. Eu só estou aqui por causa da força ancestral delas”.
No palco ou nas palavras, Melissandra não pede licença. Ela ocupa. E transforma.
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