Quando a gente pensa em educação, a primeira imagem que vem é de uma sala de aula e alguém na frente de um quadro. Mas alguns ensinam com microfones, batuques e experimentos sonoros. Afinal, a música também é uma forma de educação dentro e fora do ambiente acadêmico — quem nunca aprendeu alguma fórmula complexa usando melodia que atire a primeira pedra. Dessa forma, os artistas ocupam um lugar simbólico de mestres, muitas vezes traduzindo em som o que a escola tradicional pode não alcançar.
É como se quando a educação vem pela arte, o mundo escuta melhor. Assim como os professores por formação, a arte nos ensina a pensar, a reaprender, a coexistir, a ter valores, a nos desenvolver e a sonhar. Mesmo em um mundo que tantas vezes tentam silenciá-la.
Aprender a pensar
Música também é raciocínio, um jeito de pensar o mundo por outros meios. Um bom professor ensina a construir pensamento crítico. Um bom artista faz o mesmo, mas com o som. Como Adriana Calcanhotto, que compõe como quem desmonta o mundo para entendê-lo. Entre ironias e jogos de palavras, ela ensina a pensar pela delicadeza, a ver a poesia nas brechas do cotidiano.
Nina Simone fazia o mesmo, mas com bem mais potência. Não era para menos. Cada canção é um ato de reflexão, um gesto de lucidez em meio ao caos. Ela ensinava que pensar é um ato de coragem, não de distância.
Eu gostaria que você pudesse saber o que significa ser eu. Então você veria e concordaria que todo homem deveria ser livre (I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free, de Nina Simone)
Aprender a aprender
Alguns artistas fazem da curiosidade o próprio método de ensino. Hermeto Pascoal (tenho um especial sobre ele lá na minha newsletter) é o melhor exemplo disso: ele aprendeu música com o mundo, não com partitura. Ele aprendeu e ensinou a transformar o banal em som, o improviso em conhecimento. Principalmente, que aprender é estar atento às experiências da vida.
Juçara Marçal (que está incrível no Tiny Desk Brasil desta semana) faz isso a partir da ancestralidade. Ela investiga tradições africanas, explora texturas vocais e reconfigura tudo em linguagem contemporânea e acessível. Aprender, aqui, é lembrar. E lembrar é um gesto político.
Compreender o mundo
Existem artistas que fazem da música uma ferramenta de leitura global, como uma forma de traduzir o mundo para o sensível. E um dos nomes mais marcantes sobre isso para mim é Milton Nascimento. Ele canta o encontro entre o local e o universal, fala de algo que é de todos. Como se a música fosse uma aula de geografia emocional.
Ouso dizer que a maior cronista do Brasil moderno foi Elza Soares. A voz dela passou por todas as fases do país: a fome, o racismo, a esperança. E ela transformou tudo isso em arte e memória. Ensinando que entender o mundo é senti-lo com inteligência.
Tá todo mundo atirando pedra, com a vida cheia de pecado. Cada um fazendo a sua regra. Ninguém mais pode pensar o contrário. Mas eu apanho de todos os lados. Eles dizem que eu sou polêmica (No Tempo da Intolerância, de Elza Soares)
Conviver com os outros
Convenhamos que toda sala de aula é uma pequena sociedade, onde se aprende a negociar, escutar e respeitar pausas. As bandas, principalmente aquelas com mais integrantes, vão pelo mesmo caminho.
Olodum fez da percussão uma pedagogia de comunidade, onde o tambor é instrumento e linguagem, o ritmo é código de pertencimento. No jazz, a Snarky Puppy representa essa ideia em versão global, com músicos do mundo todo improvisando juntos. Ambas provam que a arte não se baseia na uniformidade, mas no diálogo e respeito entre as diferenças.
Formar valores
A boa educação ensina ética e empatia. Não por discurso, mas por exemplo. No Brasil, artistas como Mano Brown e os Racionais MC’s ensinaram para gerações o valor da consciência e da palavra. E o poder de se reconhecer e se orgulhar da própria história.
Com o álbum “Lemonade” (2016), Beyoncé se voltou para a comunidade negra e transformou a vulnerabilidade em força coletiva, mostrando que até a intimidade também é espaço de resistência. São vozes que moldam caráter e inspiram mudanças, como escolas éticas.
Eu gosto da minha herdeira com baby hair e black power. Eu gosto do meu nariz negro com narinas tipo Jackson Five. Ganhei todo esse dinheiro, mas eles nunca tiram o interior de mim (Formation, de Beyoncé)
Desenvolver potencial pessoal
É inegável que a música é uma forma de autoconhecimento. É com ela que a gente entende nosso lugar, seja ele qual for. Liniker transformou vulnerabilidade em força, e ao fazer isso ensinou milhões de pessoas sobre identidade e coragem de ser quem se é.
Lady Gaga, desde o início da carreira, usou a performance como método de autodescoberta. Transformou dor pessoal em estética e empatia pública. Como uma potência artística onde vestir o estranho e o exagero, ensina que a autenticidade pode ser arma. Que a identidade não se descobre, se constrói.
Quando a música ensina, ela entrega mais do que canções, mas ferramentas para pensar, sentir, conviver, criar e sonhar. Cada nota é uma aula; cada acorde, uma lição de humanidade. Às vezes, a gente só precisa aprender pelo ouvido e pelo coração.
Esse papo começou lá no podcast Chá de Canela, que vai ao ar ao vivo toda terça-feira, às 19h, no YouTube.
Veja a publicação anterior da coluna:


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