O Dia da Amizade Brasil-Argentina, celebrado neste 30 de novembro, existe para lembrar o aperto de mãos histórico entre José Sarney e Raúl Alfonsín em 1985. Foi um momento diplomático que pavimentou o caminho até o Mercosul. Mas, para além da diplomacia formal, existe outra integração, mais profunda e mais precisa entre a América que importa: a musical. A que acontece no fone de ouvido, no rádio do táxi, no YouTube e nas playlists pessoais.
Durante anos, a cultura pop latino-americana me parecia um plano de fundo distante, algo que se acessava por osmose. Em 2008, numa era em que MySpace e Fotolog ainda moldavam identidades, a obsessão era outra: futebol europeu, banda indicada por jogador espanhol, espanhol aprendido num PDF de “Espanhol para Leigos”. O tipo de fascínio que só existe quando se tem tempo livre e zero senso de escala continental.
A maturidade — e um curso decente de espanhol — abriram a porta que sempre esteve ali: a de uma América Latina completa, vibrante, contraditória e infinitamente criativa. Fora da bolha eurocêntrica, o algoritmo dos streamings vira um buraco de coelho de descobertas urgentes.

Rock de garagem e nomes que parecem charges políticas
Soda Stereo sempre foi um marco cultural, um nome que atravessa fronteiras mesmo que você não perceba. O legado da banda é tão onipresente, que até quem nunca ouviu a banda consegue reconhecer o riff de “De Música Ligera”, que virou cover de Paralamas do Sucesso a Capital Inicial.
Desse mesmo universo saem os Ratones Paranoicos, espécie de Rolling Stones platinos. E há também as surpresas, tipo Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota, que é talvez a entidade mais cult do rock argentino. Ou aquela música que escapa do passado adolescente, com Viejas Locas, aparecendo com a calma de quem nunca deixou de fazer parte do repertório latino de formação.
A cartografia musical latina não existe sem seus tíos espirituais. Entre riffs e microfonias, surgem Andrés Calamaro e seu universo confessional, ou Pappo, cuja guitarra moldou uma estética inteira de hard rock. São como relíquias que atravessam gerações sem pedir permissão.
Mas a América Latina é mais que rock. Ela é uma enciclopédia continental de ritmos. Um violão solitário entoando “Luna cautiva”, dos Los Chalchaleros, é suficiente para lembrar que o folclore andino nunca se aposenta, apenas muda de cenário e de timbre. TINI pode ter chegado ao mainstream global por colisão pop com Anitta, mas é com “buenos aires” que ela articula um outro registro mais introspectivo e melancólico.
Entre nomes cartunescos e sotaques diferentes
Essa imersão pelo continente ativa outras rotas. O caminho passa por veteranos e novatos, tipo El Mató a un Policía Motorizado, que tem, talvez, o nome mais divertido da cena alternativa; Attaque 77, um tesouro punk que nunca precisou de revival para continuar relevante; El Cuarteto de Nos, com senso de humor ácido e discografia que funciona como diário caótico de um país inteiro; Trotsky Vengarán, com seu rock de primeira e um nome que parece piada interna bem-contada; Bomba Estéreo, com o audiovisual sempre alguns passos à frente do próprio pop; PXNDX, relicário emo de uma era quase analógica; e Hello Seahorse!, possivelmente a banda que melhor entendeu como uma voz potente pode ocupar um espaço inteiro.
Se a diplomacia inventou um Dia da Amizade, a música torna essa amizade mais palpável. Ela viaja sem passaporte, sem protocolo, sem tradução. O continente pulsa em sotaques, timbres e guitarras desafinadas com orgulho.
Um continente inteiro cabe num fone de ouvido. E é justamente aí que a integração acontece de verdade.
Veja a publicação anterior da coluna:


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