Quando música e crise se encontram na retrospectiva
Colunistas Revista CDC Vanessa Pinheiro

Quando música e crise se encontram na retrospectiva

Fones de ouvido brancos envolvendo uma pequena caixa de presente rosa com laço branco, ao lado de um smartphone branco sobre uma superfície de madeira clara
Crédito: Freepik

Chegamos naquela época do ano em que as redes sociais são tomadas pelas retrospectivas musicais. A timeline vira um carnaval de indicações de música, gráficos bem diagramados e aquele gostinho de “meu Spotify me conhece melhor que minha mãe”. É divertido, claro. Mas 2025 foi o ano em que a festa do design modernoso começou a esbarrar numa pergunta meio indigesta:

Quem e, principalmente, o que exatamente você financiou com cada play?

Porque enquanto você posta “minha idade musical é 42 😂”, a indústria da música está queimando por dentro.

Tem artista saindo de fininho

Enquanto todo mundo brinca de descobrir o “mood musical” e postar que ouviu 599 artistas novos (segundo a minha retrospectiva), um grupo inteiro de músicos resolveu levantar e ir embora do Spotify, a plataforma que mais recebe críticas envolvendo pagamentos e ética.

Em 2022, Neil Young fez um boicote e tirou suas músicas do streaming após o podcast de Joe Rogan (estadunidense que nem merece perfil), exclusivo Spotify, espalhar desinformação sobre vacina. Joni Mitchell e India.Arie também removeram seus álbuns da plataforma em solidariedade. Mas foi em 2024, quando o tal podcast deixou de ser exclusivo do streaming verdinho, que Young colocou suas músicas de volta na plataforma.

Hotline TNT, Godspeed You! Black Emperor, King Gizzard & the Lizard Wizard, Xiu Xiu, e Deerhoof saíram do streaming em agosto de 2025. Por quê? Simplesmente Daniel Ek, CEO do Spotify, botou mais de 600 milhões de euros (o que, na cotação atual, dá 3,7 bilhões de reais) numa empresa de drones militares com inteligência artificial. A plataforma que te entrega playlist de “Terapia Sonora” está, literalmente, investindo em tecnologia de guerra. E de repente todo play parece uma microparcela de imposto bélico.

O debate deixou de ser “o pagamento é ruim” e virou “minha música favorita ajuda a financiar armamento?”. Canta comigo: “de pééé, ó vítimas da fooome”…

Música que vale menos que um chiclete

Quando eu era criança, a expressão que usavam para dizer que algo tinha pouco valor era “não vale um Big Big”. No caso, as músicas que a gente consome é que não valem nem um chiclete.

Foi nesta semana que a banda Los Campesinos!, do País de Gales, publicou uma espécie de dossiê expondo quanto eles ganharam das plataformas de streaming. E, olha, foi pouco. A banda mostrou que, de julho de 2024 a junho de 2025, teve 9,3 milhões de reproduções e recebeu 31,9 mil libras (cerca de 226 mil reais). Isso significa que eles precisaram de 291 plays para ganharem 1 libra. Ou seja, cada play vale 0,34 pence. Trazendo para nossa moeda, dá mais ou menos dois centavos por stream. A título de comparação, se comprar uma caixa de chiclete, cada um sai a 10 centavos, na média.

Segundo os dados divulgados pelos Los Campesinos!, o Spotify paga em média R$ 0,02 por stream, enquanto a Apple Music remunera aproximadamente R$ 0,033 por reprodução. No YouTube, o valor fica em torno de R$ 0,03 por play. O Tidal aparece como a plataforma mais generosa, com cerca de R$ 0,053 por stream, seguido pela Amazon Music, que paga aproximadamente R$ 0,048. Outras plataformas menores giram em torno de R$ 0,027 por reprodução.

Então quer dizer que os cinco mil minutos de Oasis que eu ouvi no ano (dizendo o YouTube Music) deve ter pagado bem para os irmãos Gallagher, né? Mais ou menos. O modelo Pro Rata é um grande truque: você acha que está financiando a banda que ouviu o ano inteiro, mas, na prática, está pingando centavos para quem já está no topo. Os Bad Bunny, Swift, Weeknd da vida agradecem. Se bem que pode dar dinheiro a Benito, sim.

Um filhote de gato malhado deitado sobre um pequeno teclado MIDI em uma mesa de madeira, em frente a um monitor de computador ligado
Vocês estão deixando o gatinho produtor musical triste, donas big techs. Crédito: wirestock / Freepik

Um tapa da mão invisível do mercado

A maior piada da “era do acesso” é descobrir que tudo continua nas mesmas três mãos de sempre: Warner, Universal e Sony. Juntas, controlam 70% do que geral ouve. E ainda são acionistas das plataformas. Ou seja, elas ganham se você ouvir, ganham se você não ouvir e ganham até quando seus artistas favoritos saem da plataforma.

Voltando ao caso da Los Campesinos!, por exemplo, com um contrato clássico de 20%, eles receberiam só 6 mil libras (R$ 42 mil) de streaming. Um valor quase ofensivo para uma banda com 17 anos de estrada e sete álbuns lançados.

Em 2024, o Spotify anunciou mudanças para “redistribuir dinheiro”, que começariam a valer a partir deste ano. Mas como não existe almoço grátis, os termos de uso não estão assim tão do lado do artista:

  • Menos de 1000 streams por ano? Nada de pagamento;
  • O stream só conta se o usuário escuta por 30 segundos ou mais;
  • Faz som funcional? Vai receber só uma fração de quem faz música de verdade.

Parece que demitir 1,5 mil funcionários nos últimos anos não ajudou muito quem continua pelas bandas do streaming verdinho.

A música está sumindo, não metaforicamente

Enquanto isso, uma parte silenciosa da crise aumenta: a música tá desaparecendo do streaming. Literalmente.

Catálogos somem sem aviso, trilhas sonoras evaporam por briga de licenciamento, o acesso fica cada vez menor. Mas ei, são milhões de músicas ao seu alcance!

A pirataria, antes xingada, virou acervo cultural. Fóruns, torrents, stream ripping podem estar, literalmente, salvando a música. Virou um paradoxo: os ilegais estão cuidando da memória que as grandes plataformas deixaram de lado.

Tá, mas e agora?

Se você realmente quer que seu artista favorito continue existindo:

  • compre deles direto;
  • compre físico (vinil paga muito mais);
  • guarde arquivos (sim, baixar é preservar);
  • apoie financiamentos coletivos;
  • use plataformas que pagam melhor.
Gata malhada sentada sobre caixas de discos de vinil em uma loja, com capas de álbuns vintage expostas ao fundo
A gata mandou dizer que mídia física ainda é legal. Ou pediu sachê. Não deu pra ouvir direito.
Crédito: Katerina Plakhova / Unsplash

No final das contas, o Spotify é o maior, mas não é o único “vilão”. O streaming é confortável, mas não é neutro. As retrospectivas de 2025 são divertidas e afetivas. Mas a pergunta é simples e impossível de ignorar: A sua retrospectiva é bonita, mas ela financia quem?

Veja a publicação anterior da coluna:

Vanessa Pinheiro

Colunista
Vanessa Pinheiro é jornalista e apaixonada por música. (Quase) sempre de fone de ouvido, explorando o universo sonoro sem rótulos: de clássicos lendários a descobertas recentes. Um mergulho nas histórias, influências e na emoção que faz um acorde vibrar mais fundo.

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